Sexta-feira, 29 de Janeiro de 2010

Uma história por acabar...

1

 

Naquela casa estava escuro, as janelas estavam cerradas à muito tempo, as cortinas, desbotadas, corridas até ao fim- Só alguns fiapos de luz exploravam a escuridão opressiva. Naquela casa o ar era pesado, quilos de anos, de quilos de solidão.
Acumulados.
Naquela casa.
Os putos evitavam aquela casa.
"Está vazia e não está!", diziam eles enquanto os adultos sorriam condescendentes com as suas feições assustadas.
"Claro, claro! Então mantenham-se longe, senão ainda vem o Homem do Saco e mete-vos lá dentro para vos comer!"! E riam. Riam sempre. Eles esqueciam depressa. O que lhes interessava esquecer. Porque, claramente, eles nunca tinham sido crianças, e nunca recearam o desconhecido. Eles não!...
O fumo dos cigarros bruxuleava através das copas das poucas árvores que sobreviviam na orla daquela casa. Dedos trémulos seguravam o cigarro. Indicador e dedo médio marcados pelo odor inescapável da nicotina e da folha e do alcatrão que eles respiravam com vigor. Ele já não queria ser criança. Ele não ia ter medo. Ele queria crescer. Mas quem cresce por mera vontade ou capricho, só aumenta. Só o tempo ou a necessidade nos fazem crescer mesmo, evoluir.
A beata jaz agora esmagada sob a sola das suas sapatilhas. Pretas. Como a roupa que naquela tarde vestia. Como que para espantar os medos que inocentemente julgara parte da infância, da criancice. Ilusão. Quando crescemos com medo, o medo persegue-nos, mais rápido que a idade, mais irrequieto.
O medo.

 

 

2

 

O medo que ele tentava engolir não ultrapassava o nó na sua garganta. As roupas negras não assustavam os seus temores, e nem na noite mais escura o escondiam dos seus fantasmas. Eram já muitas as beatas no chão...
Mas a coragem ainda não tinha chegado.
O silêncio da noite era rompido apenas por arritmadas onomatopeias da Natureza, os sons que ignoramos quando fazemos quase tudo, mas que estão lá. Estão sempre lá. E se metamorfosea em estrépitos assustadores quando esperamos em silêncio pelo desconhecido. Subitamente reflectiu e tomou a decisão que já julgava ter tomado antes. E dirigiu-se aquela casa.
Castelo inexpugnável das guerras medievais da sua imaginação. Eterno precipício da sua coragem, local tabu das suas gabarolices. Com aquela casa não se brinca! Era a prova que o medo é uma das mais fiáveis maneiras de obter o respeito. Mas respeito ganho por temor dá sempre lugar a revolução.
Ele era o rebelde revolucionário da rebelião que nascia da sua coragem mal direccionada para o fantástico mundo dos medos de criança, qual D. Quixote perdido entre moinhos, qual D'Artagnan e Rochefort. Por vezes quando a ilusão dá lugar à realidade traz com ela alguma tristeza.
Outras vezes não.
Ele avançou pela erva que cobria o que em tempos fora um jardim. Encostou-se à porta da frente, olhou em todas as direcções à procura de um olhar, ou se um motivo para desistir. Encostou a mão à maçaneta para abrir a porta.
Mas não seria assim tão fácil...

 

3

 

Uma floresta de branco preenchia a sua cabeça. O cocoruto saliente tinha direito a uma clareira que reflectia o luar. Por um capricho da vida, o cabelo das suas têmporas mantinha o negro original, como azeviche. O seu nariz adunco sobressaía no rosto, mas o que o dominava eram os olhos. Os seus olhos eram ainda mais velhos que ele. De uma tonalidade muito parecida com a da avelã, mas ainda mais clara, como se os anos a tivessem diluído nas lágrimas que nunca chorara.
Desde criança que ele fora temido por essa distinta característica. Ao início vieram elogios, depois a curiosidade, depois o temor, seguido da inveja, rancor, ódio!!! Ao contrário das outras crianças, não o tentavam proteger, o único desejo de todas as pessoas salvo sua mãe e seu pai era faze-lo verter uma lágrima. uma que fosse.
Justificavam-se dizendo que era para provar que ele era uma criança normal. Na realidade era um sentinmento de inferioridade que os movia. A todos eles, que na sua "normalidade" nºao compreendiam nem aceitavam algo extraordinário.
Após a morte do seu pai desistiram da estratégia de tortura e pressão para o evitarem completamente. A inveja deu lugar ao medo e ódio velados atrás de caras fechadas. No funeral do seu pai só um membro da família não pranteava, apesar do sofrimento extremo patente na sua figura. Só uma pessoa naquela igreja quase vazia não chorou.
E a notícia voou. Biazarro, chamaram-lhe. Diabo, Fantasma, Sombra, Maldito!
Sós, ele e a sua mãe reduziram gradualmente as suas saídas de casa. Daquela casa.
O passado trancou-os, o futuro preparava-se para lhe ir bater à porta.
Sonhos de contacto com outras pessoas vaguearam pela sua mente durante décadas. Seria o seu desejo satisfeito?
Talvez.
Mas não seria assim tão fácil...

 

4

 

Não sabia o que o tinha feito pensar que a porta estaria aberta. Um daqueles palpites utópicos da juventude, em que raramente o difícil o parece. Mas o falhanço é encarado sem drama, com um mero encolher de ombros.
Ele não desistia facilmente. Ele ia deixar de ser um puto, não ia desistir à primeira porta fechada!
Com o cuidado de não fazer barulho procurou a porta das traseiras. Circundou a casa, aquela casa, e em cada janela imaginava o vulto do "Homem do Saco" a observá-lo, a criança dentro de si a lutar com o adulto que ele se esforçava para ser. Mas a experiência não se origina do esforço.
Ele achou-se repentinamente num escuro ainda mais escuro, numa abóbada de sebe, mas ao mesmo tempo teve um vislumbre de uma porta antiga, que não parecia muito forte...
Então seria assim, o destino continuava a exigir mais dele, mostrava-lhe um propósito ao mesmo tempo que lhe levantava um novo obstáculo. Estava a tentar gozar com ele...
Não o conhecia. Ele não estava ali para recuar. Nem mil sebes, mil muralhas, o quarto mais escuro o impediriam de tentar até ao fim, repetia ele para si próprio, como injecção de coragem. O medo da vergonha consegue ser um grande estimulante...
O primeiro passo não foi o mais difícil. Há quem diga que o é sempre.
É falso, por vezes a dificuldade está em continuar e concluir o que começamos. Por muito difíceis que as coisas pareçam no seu início, costumam arranjar maneira de complicar quando nos convencemos que o pior já passou.
A cada passo os vultos que ele via ou imaginava ver não desapareciam, duplicavam. Cada passo era mais pesado que o anterior.
Mas ele continuou. Adiante!
A cada novo passo, a simples aceitação lhe inundava o pensamento.
Crescia enquanto se mentalizava:
Ninguém disse que ia ser fácil.

 

 

To be continued...

 

 

E pronto, é este o primeiro post do meu novo blog, se procurarem ainda encontram este material no blog antigo, mas desta vez, em função das reacções, poderão conhecer o desenrolar deste caminho..

 

REAJAM!

Um abraço.

Miguel

Rabisco da autoria de Melancholic Soul às 18:46
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4 reacções:
De claudio almeida a 2 de Fevereiro de 2010 às 00:13
penso negro. penso branco. são simples cores que traduzem, por vezes, outros espíritos que rodeiam o meu ser nas noites em que o meu impotente cerebro tenta escrever. as palavras sao vidros que quebram. sao pó e fumo, quando não autenticadas no cartório. e,por vezes nem chegam para calar uma vida que pretende rasgar a garganta e gritar, gritar, gritar e rasgar um corpo hirto! porque o corpo é hirto, o fisico, nao personagem. apenas isto miguel! está explendido, muito bem escrito, mas vejo muitos sentimentos e vivencias que entendo, por os ter conhecido na pele, também, mas nao reconheco uma vida na personagem. reconheco várias... e, penso eu, ninguem é assim tão vasto... pensa simples! só depois a mestria! mas é esse o caminho! pode vir a ser!... resta deixar de tentar ser bom, e passar a ser aquilo que, no fundo do teu ser és: muito bom! um grande abraco! jan


De BC a 2 de Fevereiro de 2010 às 22:26
Estás à espera de quê para continuar a história pa?! Tens imenso jeito!! =)

Bem-vindo aos blogs do sapo!Gostei da apresentação do teu blog!
Agr vê lá se é para continuar =P

Bjnh*


De Melancholic Soul a 3 de Fevereiro de 2010 às 01:25
Hum.. bgd pelo elogio =)
Vou ver se o mais tardar para a semana meto um novo capítulo... Não mt grande, porque as melhores coisas normalmente vêm nas embalagens mais pequenas ;)

Continua a passar por cá, és bem vinda =)

Bj


De Ori a 4 de Fevereiro de 2010 às 02:04
Fantástico como sempre! =)

"por vezes a dificuldade está em continuar e concluir o que começamos. Por muito difíceis que as coisas pareçam no seu início, costumam arranjar maneira de complicar quando nos convencemos que o pior já passou." So True...

Aguardo a continuação desta historia!


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